Saúde mental em foco: entrevista sobre a estigmatização das doenças mentais
A estigmatização das doenças mentais na sociedade brasileira foi tema da redação do Enem neste ano, chamando ainda mais a atenção para um problema que persiste ao longo dos anos. Em janeiro, como forma de conscientizar sobre esse assunto, é realizada a campanha do Janeiro Branco, um convite para que a sociedade reflita sobre a importância dos cuidados com a saúde mental. No IFFar, existem diversos profissionais que atentam para o bem-estar emocional da comunidade acadêmica. Uma iniciativa colocada em prática desde o início da pandemia foi a criação de um Comitê de Saúde Mental e Qualidade de Vida, formado por psicólogos, educadores, educadores físicos, entre outros, com o objetivo de promover ações que favoreçam a saúde mental de estudantes e servidores. O IFFar disponibiliza, por meio de sua equipe de psicólogos, atendimento psicológico a distância para a comunidade acadêmica durante esse período de distanciamento social, um contexto de incertezas e adaptações para muitas famílias.
Para falar sobre esse tema e abrir espaço para uma discussão cada vez mais importante na sociedade brasileira, o IFFar entrevistou a psicóloga e mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, Luciana Fossi.
Confira a entrevista abaixo:
1. Como podemos caracterizar a estigmatização? Que atitudes/sentimentos caracterizam esse processo?
Podemos considerar a estigmatização como um estatuto de verdade, produzida socialmente, acerca de determinados grupos de pessoas com alguma característica em comum. Dentre estes grupos, encontram-se as pessoas que possuem doenças mentais, que historicamente foram segregadas da sociedade em manicômios. Outros grupos que historicamente foram segregados, como pessoas com hanseníase, apenados, negros e a população indígena, também são estigmatizados de algum modo.
2. O que leva um determinado grupo social a estigmatizar outro grupo? É um comportamento culturalmente construído?
O estigma é construído socialmente, não apenas por grupos sociais, mas por instituições, que de algum modo respondem a uma espécie de “demanda” da sociedade em excluir determinados grupos. Por exemplo, no Brasil, temos a lei da Reforma Psiquiátrica desde 2001, que estabelece a extinção dos manicômios. Por outro lado, vemos atualmente um aumento expressivo de clínicas de desintoxicação, comunidades ou fazendas terapêuticas para internação de usuários de drogas. Tais instituições, em sua maioria, estabelecem como condição de tratamento o isolamento da sociedade - às vezes, sendo indicada a permanência de um ano para o tratamento ser considerado “completo”. Sendo assim, estas instituições também servem para que a sociedade possa encaminhar sujeitos que causem algum tipo de risco ou perturbação da ordem, respondendo a uma demanda higienista.
3. Quais são os efeitos/consequências para quem é estigmatizado? No caso das pessoas com doenças mentais, pode haver um agravamento do seu estado de saúde?
A Reforma Psiquiátrica preconiza o tratamento no território, próximo do local de residência onde o sujeito possui seus vínculos e laços afetivos. É através desse cuidado em rede, em ambiente aberto, que uma pessoa com doença mental pode construir outros sentidos para sua existência. Na perspectiva antimanicomial, compreendemos que a liberdade é terapêutica e que é no tecido social que se produz cuidado. Neste período de pandemia, todos nós tivemos a oportunidade de experimentar os malefícios do isolamento, o que nos ajuda a compreender que isolar não é cuidar. A estigmatização da doença mental – aliás, prefiro usar a expressão sofrimento psíquico, pois tira a centralidade de uma lógica sustentada em diagnósticos - pode dificultar o acesso das pessoas aos serviços de saúde mental, sob o argumento de que “psicólogo ou psiquiatra é coisa de louco”, o que prejudica medidas de prevenção de quadros mais graves. Além disso, estigma sempre vem carregado de exclusão e preconceito, o que inevitavelmente irá produzir mais sofrimento aos sujeitos.
4. Quais são as razões pelas quais as doenças mentais ainda são estigmatizadas na sociedade brasileira? Por que ainda há tanto tabu para se falar sobre esse assunto e como isso pode impactar no diagnóstico e no tratamento das pessoas com algum tipo de sofrimento mental?
Certamente, o fato de não termos fechados todos os manicômios do país e realizado a substituição deles por serviços de caráter aberto e territorial, bem como a realização de internação apenas em hospitais gerais para as situações agudas, faz com que esse imaginário do manicômio ainda exista na sociedade. Recorrentemente no meu trabalho, como coordenadora de saúde mental no município de Dois Irmãos, preciso explicar para alguns familiares que não existem instituições onde as pessoas fiquem internadas para o resto de sua vida por não se “ajustarem” às regras da sociedade. Contudo, ainda existem pessoas residindo nestes locais, pessoas que estão há décadas institucionalizadas, sem liberdade e dignidade. Retomar o processo de desinstitucionalização dessas pessoas e realizar o fechamento dos manicômios iriam fazer com que a população entendesse que o lugar da pessoa com sofrimento psíquico é perto de sua casa, de sua família, em sua comunidade. Parte do tabu em lidar com o tema tem ancoragem no assombro da possibilidade de ser internado em um manicômio. Sendo assim, muitas pessoas se calam e negam o seu sofrimento por reconhecerem apenas o manicômio como lugar para quem tem problemas de saúde mental. O manicômio é lugar de segregação, historicamente só produziu sofrimento, é preciso superar essa lógica com a execução do que está previsto na lei da Reforma Psiquiátrica.
5. Quais são as principais doenças mentais que acometem a população brasileira atualmente? Ainda há uma resistência grande de certas pessoas em procurarem ajuda nestes casos?
As principais queixas se dividem entre sintomas de quadros depressivos e de quadros ansiosos. O agravamento dos sintomas a ponto de se tornarem doença diagnosticada muito tem a ver com o contexto e as condições de vida da população. Vimos na pandemia um agravamento da saúde mental na população em geral. Situações de desemprego, falta de acesso à renda, moradia e alimentação de qualidade interferem diretamente na saúde mental da população. Muitas vezes, diante de pessoas com condições absolutamente precárias de vida, me ponho a pensar: romper com a realidade através de um “surto” é a única escapatória para a pessoa não ter que lidar com o que lhe falta, com a fome, com as violências. Muitas vezes, as pessoas não acessam os serviços por não saberem que eles existem, que fazem parte do Sistema Único de Saúde. Outras vezes, não acessam pelo preconceito do estigma já debatido aqui ou ainda, em outros casos, não acessam por estarem em situação de grave sofrimento a tal ponto de não conseguirem buscar ajuda - nestes casos, é comum que vizinhos, amigos, agentes de saúde, entre outros, acessem o serviço de saúde relatando a situação do usuário. É importante ressaltar que, nos Centros de Atenção Psicossocial, não apenas as pessoas acessam o serviço; em situações de gravidade, é o serviço que vai até as pessoas.
6. De que forma é possível diminuir o estigma em torno das doenças mentais no país e contribuir para a conscientização da população em torno desse tema?
São muitas as possibilidades de conscientizar a população sobre este tema. Por exemplo, a redação do Enem contemplar esta temática traz o debate para a mídia, faz com que possamos conversar com diversos setores da sociedade sobre o tema. Campanhas sobre o cuidado com a saúde mental e a divulgação dos serviços para a população são fatores fundamentais para que este debate se mantenha vivo e para que se reduzam os efeitos da segregação histórica das pessoas em sofrimento psíquico.
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